sábado, 13 de dezembro de 2014

Tenho família mineira, logo, minhas férias sempre foram em Minas.
A família da minha mãe vem de uma pequenina cidade no sul de Minas chamada Ilicínea.
Todo ano, em todas as férias, lá era o meu lugar.
Lembro vagamente de uma casa em que minha vó morou que quando fazia muito calor, enchia-se de formigas, era desesperador. Mas durante o dia esquecia das formigas e brincava com potes de danone, yakult, ou qualquer coisa do tipo. Minha irmã era mais moleque, gostava de pular muro para pegar jabuticaba. Lembro de uma vez que ela caiu, rasgou o shorts e estourou o joelho.
Enfim, depois lembro-me muito bem de um sobrado lindo pra onde meus avós se mudaram, eu adorava aquela casa, tinha 4 quartos, uma para minha vó e vô, um para meus pais, um pra mim e minha irmã e outro para visitas. Tinha uma sala grande, e uma varanda que junto com uma prima fazíamos casinha com cobertores. Eu achava um máximo porque tinha 3 quintais, isso em SP é impossível, eu ficava deslumbrada. Tinha também um galinheira atrás, eu sempre entrava pra pegar ovos ou correr das galinhas, uma vez caí na poça de titica e me sujei dos pés à cabeça, minha vó não me deixou entrar no chuveiro daquele jeito, e tive que tomar banho na pia. Lembro tanto dessa casa, do cheiro horrível da galinha sendo depenada na água morna, de pegar minhocas no quintal, de ficar na varanda olhando pro nada.
Ah, claro, tinha a roça, meu vô plantava café, criava boi, porco e tinha uma horta linda, e várias bananeiras. Nós passávamos o dia lá, meu pai fazia churrasco no fogão de lenha, montava uma piscininha para eu e minha irmã enquanto meu vô pegava cana para a gente chupar.
Eu tinha um pouco de medo de entrar no meio do cafezal porque tinha muita história com cobras por lá, então ia de vez em quando, só para ver os carocinhos vermelhos, e comer umas bolinhas pretas, não me lembro o nome, haviam boatos que era venenosa, e eu comia fantasiando que realmente eram.
Tinha a Gretchen, égua do meu vô, acredito que ele era um grande fã da conga la conga. Ela era branca, e às vezes meu vô colocava eu e minha irmã na carroceria para dar uma volta pela cidade. Eu amava aquilo.
Tudo era muito calmo.
Então meu vô ficou doente, começou com uma dor no dedão do pé, e acabou com a amputação na perna. Depois ele ficou bastante deprimido, a roça, a plantação, as bananeiras, eram a vida dele, e agora ele não podia mais cuidar. Minha vó levou adiante contratando pessoas, mas não é a mesma coisa, por fim vendeu tudo.
Um vez levamos meu vô para ver como estava a roça, fazia anos que ele não ia lá. Eu era pequena, não entendia direito o momento, mas hoje imagino a tristeza do meu vô ao ver tudo que ele cuidava com tanto amor, transformado num grande matagal. Sem nada, sem vida.
Mas como criança, minha diversão tornou-se esperar o sono da tarde do meu vô para ficar andando com a cadeira de rodas dele pra lá e pra cá na casa. Quando ele acordava, corria pra colocar a cadeira no lugar como se nada tivesse acontecido.

A casa tinha muitas escadas, o que distanciava meu vô do mundo, da rua, da calçada. Por isso, minha vó comprou a casa da frente, sem escadas, um quarto a menos e uma sala bem menor, o que fez meu vô apelida-la de ovo, o que eu achava um absurdo, meu vô não suportaria morar em SP, em ver os poucos metros quadrados em que se vive por aqui. Uma casa com três quartos, suíte, quintal, cozinha, área, pomar e dispensa? Isso aqui é luxo vovô.

Nessa casa eu já era um pouco mais velha, já entendia melhor as coisas, e percebia de longe a tristeza do meu vô, que apenas sobrevivia. Não adiantou ir pra lá, ele continuou em casa, sem andar na rua, nem na calçada, ela havia perdido a vontade de viver. Era nítido.
Um dia, ao me despedir dele, ele falou "volta rápido hein, na próxima eu posso não estar aqui". Nesse mês ele faleceu. Foi uma madrugada horrível, a única vez que vi minha vó chorando.

Eu fui crescendo, e cada vez com menos tempo para ir à Minas, não tinha mais como ficar o mês inteiro, já fazia outras coisas por aqui, tinha meus amigos e enfim.
Mas o "ir para a casa da vó" sempre foi sinônimo de paz, sempre imaginei o mundo desabando, e eu correndo para minas, porque lá o mundo não ia desabar. Era uma segurança que ainda sinto com tanta força, que me dá saudade e ao mesmo tempo, alívio.

Não quero falar sobre os meses finais da minha vó, foram muito difíceis. Eu já tinha 22 anos, entendia bem o que estava acontecendo e me doía, doía porque eu sabia que ela ia embora, eu sabia, era só uma questão de tempo.
A última vez que a vi em vida, ela me deu uma mantinha de oncinha, porque se lembrou de mim quando o moço passou vendendo.

Não preciso dizer o quão foi horrível perder minha vó, que mesmo numa cidade tão pequena, amava desfilar comigo pela cidade para mostrar minhas tatuagens. Ela ficava passando a mão tentando entender como aquele desenho não saía da pele. E sempre dizia que achava lindo.

A casa dela, hoje, da minha mãe continua lá, cuidamos como se ela estivesse cuidando, todos os seus móveis, suas rosas no jardim estão intactas. O pé de jabuticaba, de mexerica, de laranja, de temperos, estão todos lá, usufruímos de tudo com muito amor e respeito.

Minha infância em Minas não poderia ser melhor, pescando, andando a cavalo, brincando com minhoca, comendo muito doce e pão de queijo, eram coisas que nunca existiram para mim em SP.

Hoje, a casa da minha vó continua sendo meu refúgio, mesmo sem ela, só há paz naquele lugar. Durmo bem, acordo bem, tudo fica bem.
Tudo muito bem.

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